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texto maria montero
Resta um resto
Por Maria Montero
1.
O exercício de acompanhar um artista provoca sentimentos de grandes profundezas.
A escuta fiel é vital.
São almas do ofício, é
preciso um grau de desprendimento do mundo material para entendê-los, acostumados
que somos à vida dita normal, do
trabalho que serve apenas para pagar as contas e adquirir “bens”.
Buscamos nas “horas
vagas” divertimento frívolo e prazer.
Quais horas são vagas
para um artista?
O ofício de observar com
a lupa da intimidade o fazer artístico, causa uma espécie de abismo, o que eles
fazem, não é recortar o mundo a partir de um ponto de vista, é concepção de
matéria viva pulsante. Concebem novas equações, equilibrando o ecossistema da
existência, nos livrando da vida por vezes tão cretina, violenta e desequilibrada.
2.
O vídeo começa assim: Jurandir abre a caixinha
de fósforos e acende um
cigarro: “Isso que você está documentando, é um ato corriqueiro”.
Seria, não fosse suas
mãos mecânicas, ganchos amarrados com elásticos amarelos.
A gambiarra já foi discutida
anteriormente como conceito na arte contemporânea . Nas habilidosas mãos desse
senhor, entretanto, não há charme, nada
de fetiche tipo exportação.
A prótese abjeta é
ferida aberta.
Não se vê o rosto
desse homem, ele está sentado e por decisão do artista a câmera filma do
pescoço para baixo, omitindo sua face.
Jurandir é apenas mais
uma das pessoas sem rosto que perambulam pelo centro da cidade de São Paulo, embora
não pareça um morador de rua, nem tampouco demonstre disritmias comuns aos usuários
de crack que circulam pelas redondezas.
Surpreendentemente, a
fala de Jurandir apresenta-se isenta de qualquer conteúdo sensacionalista. Pausada
e lúcida poderia haver saído de uma palestra de autoajuda.
Conta ele que na Atos
Colchões escutou o chefe dizer que não queria ali ninguém mais inteligente que
ele, ofendido, saiu em busca de novos desafios: “Dá valor a quem te dá valor,
quem não te dá valor que se dane”.
Nada mais se sabe
dessa sábia figura. Pouco se sabe da vida dos personagens que habitam essa
camada escurecida da nossa sociedade.
O vídeo é uma conversa
gravada por uma câmera simples, sem
ensaio, nem planejamento.
Trata-se de um
monólogo, a única parte da conversa que não está gravada em vídeo, é quando
Jurandir conta que aquele dispositivo de metal, foi algo oferecido na rede
pública de saúde.
Segundo ele, há outra
opção, mais parecida com a mão humana, essa porém, não possibilitaria a Jurandir
dispor da habilidade que possui, e que se vê, no gesto corriqueiro de acender e
fumar o seu cigarro.
Ironicamente para
nossos padrões, privilegiou funcionalidade em detrimento à estética.
3.
Passávamos de carro pelo Largo do Arouche quando Gustavo Ferro viu de longe um pano
preto amarrado no buraco de ventilação. O pano dançante, parangolé urbano, se
contorcia com destreza. Queria muito filmar, como o sol já havia se posto, resolveu
deixar para o dia seguinte.
Quando chegou ao local,
contudo, o saco não estava mais lá. Sentou, e ao seu lado estava sentado o Jurandir.
Pediu permissão e ligou a câmera.
4.
Estamos localizados na Rua número um da cidade de São Paulo, a poucos metros do marco zero da
cidade, num quarteirão tombado pelo patrimônio histórico, cercada de
construções restauradas, ar de colônia.
Na rua ao lado do
Phosphorus, uma fila de postinhos de ferro antigo protegem as construções e os
pedestres dos carros que passam, já que se trata de uma rua estreita.
Essa mesma rua, ao
entardecer, serve religiosamente de morada para dezenas de pessoas, com suas
barracas improvisadas, cachorros, cobertores que ficam guardados durante o dia
dentro dos bueiros da região.
O primeiro postinho
foi encontrado caído nessa rua e foi levado para o Phosphorus pela mãos da minha
sócia. Não foi um furto, se considerarmos que o dito objeto já estava abandonado.
Foi como um brinquedo
para Gustavo Ferro, que fez instalação, escultura, equilibrou em pedras na
parede, virou de ponta cabeça equilibrando num buraco da sala expositiva
enchendo d’agua. Ficou perambulando pelo Phosphorus junto ao seu artista mentor,
enquanto do lado de fora, cada dia um aparecia caído na rua como num jogo de
boliche.
Por uma feliz
coincidência, semanas antes da exposição só restava um postinho para contar
história (como se vê na foto desse impresso).
Antes da extinção
completa, Gustavo Ferro fez daquele primeiro postinho um molde, para então reproduzi-lo
em uma série de esculturas de gesso.
Foram meses até
acertar o ponto e depois mais meses para definir como e onde mostrar:
pendurado, numa sala, na outra...
Encontrou seu lugar no
corredor, dificultando a passagem, o que provoca logo na entrada do Phosphorus uma
necessidade de atenção particular.
Exercício de tomada de
consciência do corpo e do espaço.
5.
Pode tocar?
Pergunta frequente em exposições de arte contemporânea.
É proibido, com raras
exceções.
Essas bolinhas,
amarelas e prateadas na parede do Phosphorus são chamados de elementos táteis.
Pisos táteis são pisos
instalados na cidade que vemos (vemos?), em áreas externas, feitos de placas de
concreto, ou internas, feitos de placas de borracha.
Sua função é servir de
sinalização para deficientes visuais.
O assunto dos pisos
táteis tem sido recorrente nas pesquisas recentes de Gustavo Ferro, com esses materiais
construiu módulos, parede e projetos futuros de monumentais blocos táteis urbanos.
O ponto de partida
dessa pesquisa foi a observação de áreas instaladas no tecido urbano que
serviram, na época de sua instalação, como sinalizadores de algum elemento; um
orelhão, um ponto de ônibus, que foi posteriormente extraído, deixando apenas
um indício. Gustavo Ferro mapeou essas áreas.
Desenhos inúteis para
cidade.
A intimidade com o
material desdobrou nos desenhos isométricos.
Apesar de planos e
instalados na parede causam ilusão de tridimensionalidade.
6.
A pintura veio para dar liga no conjunto de trabalhos mostrados na exposição.
Explosão gestual-cromática,
ocupa na mostra uma lacuna que estávamos percebendo no espaço físico e mental.
Gustavo Ferro tinha a
casa abarrotada de objetos empilhados equilibrados. Tudo era uma forma de pintura
em cores vibrantes, fluorescentes. A pequena casa na Vila Mariana estava tomada
de excitação e desejos latentes.
Fitas adesivas coloridas,
móveis, desenhos com spray, caneta, tinta, lápis. Cheiros e bagunças do lar
misturavam-se, tudo um só.
Mais que um
ateliê-casa, aquilo era “seu trabalho”.
A produção foi tomando
corpo, autonomia, densidade, o percurso de artista foi sendo trilhado; salões,
programas de exposição, residências.
Nesse caminho,
trilhado com um nível de seriedade e dedicação comoventes, foi complicado
(impossível) levar na mochila a experiência da casa.
Na tentativa de
reconstrução o volume conceitual e a massa pictórica ficavam prejudicados.
Mudou de casa, foi para a Espanha, voltou, virou do avesso e deu chance para
novas experimentações, passou a perceber o espaço público, o lado de fora.
Entendeu a importância das andanças, perambulou a deriva e seguiu desafiando
suas competências técnicas, sempre questionando
seu próprio discurso num debate interno árduo, que vai se desenrolando no ato
de fazer e pensar.
Essa pintura é uma
homenagem aos caminhos escolhidos, aos desdobramentos. Que só se aprende
fazendo e só se acerta errando.
7.
Resta uma semana para a abertura da
exposição e ainda estamos debatendo sobre quais vídeos devem, ou não, estar na
mostra.
Gustavo Ferro não abre
mão do encontro entre os aviões no céu.
É traço, é linha é
movimento constante. Algo que lhe é muito caro.
O saquinho dançante (que,
diferente daquele preto que estava no Largo do Arouche, teve tempo de ser
registrado) é bem humorado e dá pistas da maneira como o artista estabelece
suas relações e desenvolve seus procedimentos.
A roupa secando ao
sol. Retrato de uma nação, ensolarada, tropical, urbana.
E sem teto.
Precárias, as
radicalidades e as feridas urbanas explicitam sua beleza; cor, música, poesia.
Tristeza arrebatadora como nas letras dos sambas.
É coisa corriqueira
para quem circula por aqui.
Estranhíssima aos
olhos de um estrangeiro. Símbolos culturais do nosso Brasil brasileiro.
E o vídeo do pássaro?
O enorme pássaro azul
repousa quase imóvel, percebemos a respiração muito frágil expandir e retrair
seu pequeno corpo que cresce com a escala da projeção e se transforma num
enorme animal mitológico.
Será que ele resiste?
E nós?
Que estado é esse que
antecede uma possível morte?
Resta algo além?
Resta um postinho
solitário na rua. Resta o que fica do todo, os quadrados táteis, restos
urbanos, resta a fita amarela com letras recortadas, restos, resta o que fica
por dizer, os vestígios, os excessos, as ruínas, as cinzas de uma cidade que
arde em questões urgentes.
Só restam restos.
E resta pouco.
(Texto originalmente escrito para a exposição Resta um resto no Phosphorus em 2014)