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texto germano dusha
Ground Control
Por Germano Dushá
Que voz têm as barreiras, os canteiros, as calçadas e as
grades que nos cercam? Como é possível uma gambiarra vista em qualquer canto
nos comover? Quais forças nos interpelam enquanto caminhamos pela cidade? O
trabalho de Gustavo Ferro sacode a todo tempo os entendimentos que temos dessas
questões. Para além do que podemos observar com um olhar condicionado, ou
enunciar com referenciais conhecidos, o artista busca formular proposições
insólitas a partir de objetos e fenômenos banais, reconfigurando a dinâmica do
que nos é perceptível.
Como aponta o título “Ground Control”, esta exposição se
inclina sobre os esforços de construção e vigilância do espaço público.
Desenvolvida através da pesquisa e vivência em grandes áreas metropolitanas na
Europa e na América do Sul, reúne movimentações, flexões e justaposições que
jogam com os efeitos – físicos e psicológicos – que os tijolos, concretos e
ferros produzem no tramado urbano. Esmiúça, assim, a natureza dessas forças
voltadas para garantir segurança e isolamento; e tensiona o limite das
possibilidades de contato que podemos travar com esses vetores.
No vídeo “Sem Título (bus)”, gravado durante uma residência
artística em Quito, no Equador, assistimos uma cena cujo absurdo é absorvido
pelo fluxo das atividades comuns. Trata-se da passagem de alguns ônibus que, ao
dobrarem à direita em uma rua estreita (ao lado de onde hospedava-se o
artista), melindrosamente tiram fino da calçada – já deformada, como se
alterada para permitir que as máquinas cheias de gente prossigam. Após nos
conduzir pela situação por todos os ângulos – de maneira crua e direta, em um
misto de aflição e humor –, o artista intervém com uma pedra que bloqueia o
caminho. A metáfora é colocada a serviço de implicações práticas
incontornáveis, que frustram a expectativa e exigem a reação de quem lhe
encara. Em resposta à obstrução, uma pessoa desce, a retira e coloca do outro
lado da rua. Logo o automóvel se esgueira e segue o percurso. Não há aparentes
indagações ou maiores preocupações. Para quem assiste, no entanto, ficam
sublinhadas as problemáticas envolvendo um tecido sensível anestesiado, e os
improvisos e indiferenças característicos a certas regiões marcadas por
confusão e precariedade.
Já na série “Multiverso”, que combina técnicas de desenho e
gravura, Gustavo se vale de um procedimento dividido em fases. Primeiro
cataloga, por meio da fotografia, diversos obstáculos encontrados no cenário
urbano. Depois, seleciona determinados objetos para serem desenhados com pastel
seco e carvão. Em seguida, inicia um processo de transferência entre os papéis,
criando monotipias consecutivas que sobrepõem as figuras reunidas. O resultado
é uma vibração de corpos acelerados por uma velocidade que os produz e os
desmonta, numa composição que nunca se conclui perante o espectador.
Testemunhamos então uma massa caótica; e perdemos noções de escala e função
para atribuir novos sentidos às tentativas de regular e moldar os usos da
cidade.
Em outra obra, produzida com ajuda de colaboradores dentro
de serralherias, confecciona integralmente um módulo de barreira de contenção
para o esculpir em uma disposição estranha. Ao apropria-se de uma forma
conhecida com o propósito de corrompê-la, cria uma configuração que já nasce
sob o signo da incorreção. Põe em evidência, então, o conflito entre resoluções
impregnadas em nosso imaginário social e o vigor de gestos que se arriscam em
transformar significados originais. No caso em questão, a anomalia pode ser
entendida também como objeção a própria violência representada pelo objeto
inicial – sempre utilizado para cercear e impedir. Resta um utensílio –
habitual mas nunca familiar –, em uma condição que anula seu uso costumas para
o dispor de um jeito inaudito.
Por fim, próximo da porta de entrada do prédio que abriga a
mostra, há um carrinho de mão para “piquetes” – nome dado pelo artista às
pequenas estruturas feitas de forma caseira para cumprir incumbências de
sinalização, demarcação ou interdição. Desde 2012, Gustavo as coleciona com
base em um padrão norteado pelo tamanho e pela base cilíndrica. Ao encontrar um
desses mobiliários desamparado, o subtrai. Quando há um proprietário ou
guardião declarado, trava diálogo e propõe uma troca: oferece um item novo, com
as mesmas características do anterior, para que possa levá-lo embora. Em
caso positivo, mais tarde regressa ao local para substituí-los. Aqui, esse
material serve como registro de um projeto em andamento, e índice de futuras
ocorrências de negociação e deslocamento. De igual maneira, traz à tona o
repertório de uma linguagem visual espontânea que permeia os arranjos informais
espalhados pelas ruas.
Como instrumento crítico para pensar o papel desses
elementos de controle que balizam nosso comportamento, cada trabalho apresenta
disposições diferentes de experiências comumente conhecidas. Ao examinar as
intenções de repressão que impomos e às quais somos submetidos no dia a dia,
propõem outras relações com o que é programado para afastar sem de fato se
fazer notar. Nesse sentido, mudam o que nos é visível; reprogramam a
organização de nossos afetos; sugerem um tempo que não o do atarefado
cotidiano; e repensam o lugar do outro e os meandros de como reconhecemos,
arquitetamos e registramos o espaço que nos cerca coletivamente.
(Texto originalmente escrito para a exposição Ground Control na Sé em 2016)