✕
texto ana maria maia
Um ponto entre um triângulo, um círculo
e vetores de duplas flechas
Por Ana Maria Maia
Em uma página de caderno, entre manuscritos com
grafite, desenhos de observação, listas de afazeres, exercícios de espanhol e
notas de compra coladas com fita adesiva, Gustavo Ferro fez um diagrama
esquemático para representar suas andanças pelas ruas do centro de São Paulo.
Tracejou uma linha imaginária que separa duas regiões, muito embora não assuma
qualquer indicativo de rua ou vizinhança geográfica. Sobre essa linha,
demarcou-se como um ponto pequeno e denso, a partir do qual se projetam a
“zona” e a “intuição”, dois polos espelhados na dimensão de suas práticas.
O primeiro polo é circular e requer a aproximação
pelas bordas, voltas inteiras para atingir o centro ou retornar ao lugar de
origem. Já o segundo emana uma forma triangular capaz de se expandir e
expandir. O ponto, nesse jogo perceptivo, está submetido a movimentos em
diferentes sentidos e escalas. Se, por um lado, recolhe e interioriza a vida
pública, por outro, alça as experiências mais particulares, suas e de outros,
para o âmbito do comum. A “zona” torna-se íntima, e a “intuição” guia a busca
do desconhecido. Nessa dinâmica, conforme descreve o diagrama, conquista e
aceitação, mapa e deriva, cidade e sujeito entremeiam-se e são entremeados por
vetores com duplas flechas. Apesar de, por vezes, binário, o esquema evita o
dualismo para manter-se pendular e especulativo. Não há “zona” sem “intuição”,
e vice-versa.
A zona
Além da deriva até o esgotamento físico, por
curiosidade e deleite, as caminhadas têm como objetivo a coleta daquilo que o artista
chama de “piquetes anônimos”. Piquetes porque são objetos autoportantes usados
para interditar fluxos de pessoas e carros na cidade, protegendo, com isso,
entradas de garagem ou outros espaços privados. Anônimos porque seu autor – e,
muitas vezes, até seu dono – permanece desconhecido. Esse anonimato talvez
pouco importasse caso os piquetes obedecessem a um padrão construtivo
industrial, sem variarem material ou forma. No entanto, manufaturados como
gambiarras a partir do que se tem à mão –geralmente restos do canteiro de obras
ou da vida doméstica, como cabos de vassoura, sarrafos de madeira e latas de
tinta preenchidas com cimento, para ganharem peso e estabilidade–, espalham-se
pela cidade como um vasto conjunto de interpretações e adaptações.
Ao longo de quatro anos (2011-2015), Gustavo retirou
das ruas cerca de cinquenta piquetes e experimentou mostrá-los em diferentes
exposições de arte. Desarticulados de suas ambiências e funções originais,
tornam-se evidência plástica de um laboratório espontâneo de linguagem. Dentro
do cubo branco, suscitam a arte povera e o modo como, na virada para a década de 1970, esse movimento quis tornar
perecíveis, e até mesmo vulgares, a escultura e o monumento. Também lembram os readymades de Marcel Duchamp, uma vez
que, apropriados de outras partes, complexificam as noções de autoria e
legitimação no sistema da arte. Sem haver confeccionado nenhum dos piquetes, o
artista os reconhece como manifestação coletiva e os coleciona. Sua assinatura passa
pelos gestos de pautar a história desse mobiliário urbano não oficial e dela
tornar-se íntimo e participante. Autoria, nesse caso, ganha contornos de
responsabilidade. Como uma espécie de cicerone, o artista torna-se responsável
pelo modo como esses objetos serão creditados, expostos, guardados e talvez até
comercializados.
A
intuição
Ainda conforme a matriz dadaísta, o resultado da
coleção Piquetes anônimos deve-se, em
grande parte, ao acaso. Não mais o acaso que precisa postular a irracionalidade
perante o apogeu do industrialismo moderno, mas aquele advindo das tentativas
de burlar regimes de visibilidade instituídos e salvaguardados na sociedade
contemporânea. O urbanismo, a imprensa e, por que não, a arte, poderiam ser
apontados como exemplos dessas estruturas, que tanto servem para ratificar
quanto para pôr em xeque toda sorte de hegemonia.
Imaginemos as andanças de Gustavo como uma espécie de
“lance de dados” sobre um território de proporções metropolitanas. Para cada
viela escolhida, outras tantas nunca chegaram a ser atravessadas. Nesse
ínterim, quantos encontros deixaram de acontecer? Uma chuva, um roubo, uma obra
de reparo nas calçadas, o prolongamento de ciclo-faixas pelo centro de São
Paulo: todas essas variáveis podem ter sido determinantes para as coletas. Sobre
sua incidência, nunca se saberá.
Como um cartógrafo não só solitário, guiado pelo
ímpeto quixotesco de mapear, mas também confortável com o inglório e o
improvisado, o artista foi pouco a pouco povoando seu itinerário com endereços
e colaboradores. Raras vezes um piquete foi encontrado sem algum guardião por
perto, um vigilante, um vizinho. Em todos os outros casos, fizeram-se
necessárias uma negociação e a oferta de um novo piquete em contrapartida,
capaz de substituir o original na função de interditar o espaço. Nos moldes
usuais, com lata, sarrafo e cimento, Gustavo confeccionou os piquetes de todas
as trocas. Sua busca, com isso, era mais ética que estética. Não os assumiu
como objeto nem intervenção; não os reconheceu como obra nem os catalogou em sua
coleção. Ele o fez para honrar relações interpessoais recíprocas e
equivalentes, cujos vínculos de afeto extrapolam os limites do sistema da arte.
Dessa maneira, haverá sempre uma parcela de Piquetes anônimos que não se poderá
vislumbrar nem apreender. Há que se intuir. Espalhado entre diferentes esferas,
entre a representação poética e museológica, e as possibilidades de engajamento
e intervenção concretos no cotidiano, o projeto interessa-se exatamente pela
fratura e pelo fracasso. Um fracasso que, antes de ser seu próprio, é da
cartografia como ciência de conquista cartesiana e unilateral. É do museu, como
depositário de testemunhos completos e autônomos da história. Seria a coleção
de piquetes uma paródia crítica a esse legado?
O desafio enfrentado pelo artista (pelos artistas) é
justamente o de intensificar a polaridade e prolongar as travessias políticas e
semânticas de um norte a outro. Voltar a situar-se entre indivíduos,
desmembrando, para isso, o normatismo muitas vezes verticalizado das
instituições. Entre pares, fomentando comunidades, quem sabe, o artista precisa
partir de sua ineficiência, de sua dependência e de sua ignorância para mirar
com humildade os istmos geográficos e humanos que deseja alcançar. Cada um que
estipule seus meios e mantras para tanto. Os de Gustavo, prescritos no diagrama,
que não se sabe se anterior ou posterior aos fatos, se projeto ou relato, se
presságio ou anamnese, são: “ordem – ação – sincronia”.
Ana Maria Maia é pesquisadora, professora e curadora de
arte contemporânea. Faz doutorado em Teoria e Crítica de Arte na ECA-USP.
Organizou os livros Série Encontros - Flávio de Carvalho (Azougue,
2015) e Sobre artistas como intelectuais públicos (Casa Tomada
e Prólogo Editora, 2012).
Texto publicado originalmente no catálogo da Temporada de Projetos do Paço das Artes 2015, rerefente a exposição Piquetes Anônimos de Gustavo Ferro.